Chiquinho bananeiro

Letícia Copatti Dogènski
6 min readJul 22, 2019

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O relógio da torre da capela na Praça soava de hora em hora, organizando o costumeiro da vida. Na sétima badalada da manhã, as ruas já se enchiam de gente na rota de seu quefazer, buscando frutas novas ou pães ainda quentes para a primeira refeição do dia, ou apenas respirando os ares frescos que se achegavam junto ao clarear. Às onze, sob o ferver do sol, o centro era um viveiro lotado em suas ruas estreitas, e os comerciantes diante das tendas e armarinhos se esgoelavam a chamar fregueses que, na pressa do breve almoço, iam-se batendo em ombros pela rua. Quando os sinos repicavam quatorze vezes, era sagrado ver aquele homem tão conhecido abanando boas-tardes no desembocar da Rua da Cores rumo ao Centrinho, pendendo à direita ao carregar a enorme cesta de frutas, de camisa aberta a revelar no peito os pelos que se escasseavam na cabeça. Chiquinho bananeiro era figura comum na cidade, e sua presença naquelas veredas marcava o início da tarde tão bem quanto o relógio.

Naquela quarta-feira comum, Chiquinho bananeiro saiu de sua casa na Vila Madalena e seguiu pela Rua das Cores até chegar no Centrinho às duas em ponto. Fazia esse mesmo trajeto dia sim, dia não, levando escorado no braço o cesto repleto das encomendas de Dona Tereza para sua Fruteira Brasil. Eram cinco cachos de banana-da-terra que, por ser mais cara, saía menos; dez de banana-nanica, a preferida dos fregueses; dez da banana-prata, a melhor escolha das senhoras para a bananada; mais uns diversos da banana-maçã e da ouro, mais macia pra quem carece de alimentar as crias. O vime aguentava rangente a abundância das plantações de Chiquinho que, apesar do peso a endurecer os músculos do braço, seguia seu caminho com o esquerdo livre a acenar aos conhecidos. Afora o rumo prazenteiro, no entanto, os últimos dias de entregas não o faziam contente: já duas vezes Dona Tereza reclamara uns cachos faltantes na encomenda.

Naquela tarde, Já chegou escondendo a desconfiança no sorriso aberto sob o bigode grosseiro. Cuidou Dona Tereza retirando cada cacho da cesta e contando de acordo com suas variedades, para bem verificar as contas. Eram certeiras as dúzias de nanicas e pratas, bem como o sortimento de bananas-maçã e ouro, mas por mais que virassem e revirassem os cálculos, não havia outro modo de dizer: faltavam dois cachos de bananas-da-terra. “De novo, Seu Chiquinho!”, Dona Tereza reinava, “Eu te pago antes que é pra bem receber minhas da-terra”, ao que o bananeiro discutia que não era possível. “Só pode que me fugiu a matemática!”, dizia, “Que contei e repeti os números quando aprumei as ditas no balaio!”. Tereza, senhorinha minguada com ares xucros aprendidos nos tantos anos de comércio, bronqueava Chiquinho que “Tu tem de me trazer certo essas bananas, que o povo todo quer pro lanche da tarde”. Ao homem, só restava implorar os mil perdões e fazer juras de êxito da próxima vez.

Saiu da Fruteira Brasil atordoado pelo desdobramento, queixando como diabos as frutas desapareciam mesmo com tanta conferência. Chiquinho refez o caminho anterior, seguindo pela Rua das Cores até chegar à Vila Madalena, esperando que num meio-fio qualquer reconhecesse o leito perdido de seu produto, despencado do vime num descuido. Chegando em casa de cesto vazio, porém, sem se deparar com os frutos faltantes abandonados na via, tentava relembrar cada suspiro solto naquela manhã quando colheu as pencas do enorme bananal que se estendia além de sua casa. Na roça frutífera estacionada numa beirada da cidade, onde era vizinho de longos campos verdes desviados, punha-se à janela contando o que via para se certificar de que os números não haviam lhe abandonado a memória: centenas de bananeiras, seis pássaros voando, vinte formigas passeando no beiral. Ciente das cifras, imaginava que artimanha Dona Tereza aprontava para lhe afanar uns cachos e passar despercebida ante sua ingenuidade.

Conhecia muito bem as dezenas, conformava-se a si mesmo revisando o bananal, mas talvez Tereza não o fizesse. Decerto surrupiava rápida como uma lebre uns cachos debaixo do balcão, num momento qualquer que estivesse distraído, de modo a receber bananas a mais lhe pagando aquém. Ou talvez, quando transferia os cachos do cesto à banca, colocasse-os bem juntos, de modo a parecer que dois eram apenas um, logrando-o pelos olhos. Quem sabe ainda, enganasse-o no nome dos números que, apesar de muito bem sabido, que provava a si mesmo contando as vistas, às vezes se confundia na ordem. É que a vida na roça lhe ensinara ainda muito cedo como doem nas pernas as distâncias, como necessitam de braços fiéis as plantações e como a educação formal é privilégio. Desde muito garoto ajudava o pai na manutenção do roçado, o que não lhe dava sequer muito tempo para os jogos de bola, quiçá para a prática das letras e da aritmética, aprendidas na suficiência para se manter os negócios.

Aprendeu a cuidar do bananal, conheceu os segredos do seu cultivar, seu adubo e o melhor aguar do solo, o ponto certo da colheita e como manter o fruto sempre firme. Quando o tempo fê-lo seu à partida de seu pai, tratava-o como ao filho que nunca tivera, sendo retribuído em muitas alegrias. Houve vez em que uma artista em ascensão, cujos cabelos ornava com flores e frutas tropicais, pôs-se a dizer aos quatro cantos que o arranjo equilibrado em sua cabeça só era assim, tão bonito, porque utilizava dos produtos de Chiquinho bananeiro. Ainda, tinha para si que a imagem da plantação à primeira luz da manhã, quando se sentava à janela da cozinha com seu café recém passado, era a mais bonita do mundo, e toda sua. Também eram as bananas que mantinham vivas suas memórias do pai que os anos insistiam em fazer desbotar. Ao entrega-las às vendas nasceram suas melhores amizades, demonstradas no mundaréu de gente que o parava na rua para uma prosa ao vê-lo passar em direção ao Centrinho.

Tirou a quinta-feira para matutar, sem muito sucesso. Repetiu em pensamento cada passo das últimas entregas a fim de desvendar o sumiço das pencas: colhera-as de manhãzinha, espalhou-as no gramado à beira da plantação, contou-as três vezes, arrumou-as todas no grande vime, fez a pausa pro almoço e, batendo a primeira hora da tarde, saiu com o produto, que a entrega à Dona Tereza era marcada para as duas. Seguiu pelo caminho comum, acenando para Seu Genaro que, como sempre, sentava-se à porta da barbearia a esta hora. Mais à frente, Dona Margarida lhe perguntou como passava o dia, e ele prometeu que traria uns cachos da prata para que fizesse sua bananada. Quase chegando ao Centrinho, encontrou aquelas duas meninas de saias esfarrapadas empoleiradas no murado da Igreja que lhe fizeram os costumeiros galanteios e o pararam para que conversasse uns minutos. “Amanhã entrego de novo na Fruteira Brasil”, dizia a si mesmo, “E é nesse curso que vou aclarar a história”.

No corriqueiro da manhã de sexta-feira, colheu não cinco, mas sete cachos de banana-da-terra. Ainda reuniu os dez de banana-nanica, a preferida dos fregueses; dez da banana-prata, a melhor escolha das senhoras para a bananada; mais uns diversos da banana-maçã e da ouro, mais macia pra quem carece de alimentar as crias. Enfileirou-as no gramado e refez as contas antes de aprumar as frutas no cesto. Comeu seu almoço, ergueu o balaio no braço, desceu a Rua das Cores, deu-se com Seu Genaro e Dona Margarida, parou para conversar com as moças sobre o murado da Igreja. Depois de ouvir seus galanteios, seguiu caminho fingindo não perceber sua cesta um pouco mais leve. Rumo ao Centrinho, ia pensando nas contas, enfim corretas: os dois cachos a mais de banana-da-terra que trouxera naquela manhã se enrolavam esconsas nas saias esfarrapadas das meninas que, risonhas na certeza de o terem enganado, iam-se pelo caminho contrário.

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Letícia Copatti Dogènski
Letícia Copatti Dogènski

Written by Letícia Copatti Dogènski

Autora dos livros A Última Rosa do Verão (2017) e Previsões de Mau Signo (2017). Uma criança aguada, um navegante.

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